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“Me Despedaço para Manter Você Inteiro”: Um Olhar sobre o Padrão do Sacrifício

Foto por Trung Nguyen em Pexels.com

Essa é uma afirmação forte, mas uma realidade que vem para chamar a atenção diante de padrões de sacrifício que herdamos, absorvemos ou desenvolvemos ao longo da vida e que, aparentemente, parecem “normais” nas relações – contudo não são nem normais, nem saudáveis. Essa ilusória normalidade se perpetua de forma transgeracional, seja por meio de crenças e padrões familiares, seja por questões culturais e religiosas.

Muitas vezes, essa dinâmica é experimentada em relacionamentos onde há dependência de um lado e co-dependência do outro, relações simbióticas que podem também envolver grande dificuldade de mudança por ambas as partes que intrinsecamente enredadas estão. Essa situação pode ser experienciada de forma consciente ou inconsciente – em muitos casos, esse padrão pode ser percebido em gerações passadas, passando a ser perpetuado como uma lealdade ou uma crença que trava, limita e bloqueia o fluir da autonomia de cada um – de maneira que quando a pessoa toma consciência, já está se sacrificando pelo outro sem perceber, indo além dos seus limites ou doando/fazendo além do necessário.

Caso essa consciência não encontre a raiz do desequilíbrio entre o dar e o receber, dos porquês da necessidade de sacrificar-se, é provável que essa dinâmica na relação fuja do controle de quem “se despedaça para ver o outro inteiro”, isso porque ela se encontra “na sombra” desse indivíduo: aquela parte sua que está obscura, onde a luz da consciência ainda não foi capaz de chegar. O que está obscuro pode estar relacionado a algum trauma vivido, um bloqueio emocional, um desequilíbrio entre o dar e o receber na fase adulta pela desordem dos fluxos de amor na infância relativo à pai, mãe e ambiente familiar. De outro modo, pode estar relacionada a uma lealdade inconsciente para honrar um antepassado que foi excluído.

É através da compreensão da sua origem, do trabalho interior constante transformado em ações para mudar e ressignificar a rotina e os relacionamentos, da identificação dos próprios limites, da posse da verdadeira autonomia emocional e dos movimentos da própria alma que torna-se possível modificar esse padrão de comportamento. O trabalho com a constelação familiar sistêmica também é uma ferramenta auxiliar importante nesse caminho pela busca do equilíbrio interior. E dentro desse contexto, é importante mencionar que qualquer que seja o processo terapêutico envolvido, o tempo e o sucesso do trabalho vai depender do quanto a pessoa se permite aprofundar, assim como do quanto ela é capaz, respeitando seus limites a cada passo.

Então, qual seria a dinâmica oculta que reside no “me despedaço para manter o outro inteiro”? Segundo Léo Costa, Educador e Terapeuta Sistêmico do Instituto Alegria, e Coordenador Acadêmico da ACBEU – Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, em Salvador, Bahia: “Em primeiro lugar, a pessoa que se sacrifica pelo outro a ponto de se prejudicar geralmente tem uma imagem de auto importância descolada da realidade. Ela diz a si mesma: – Sem o meu sacrifício, sem a minha presença, sem mim, o outro não sobrevive”.

Muitas vezes, essa necessidade de sacrificar-se pelo outro já existe como dinâmica dentro da família há algumas gerações – podendo estar relacionado a casos que envolvam vícios com álcool, drogas e violência, ou mesmo que envolvam o excesso assistencial e a dependência ao outro. Se observarmos a história de um grupo familiar, podemos perceber e encontrar o padrão, principalmente com filhos sacrificando-se pelos pais ou vice-versa.

Foto por Francesca Zama em Pexels.com

No caso de mães que se sacrificam pelos filhos, de irmãos mais velhos que se sacrificam pelos mais novos na falta dos pais, por exemplo, vemos as histórias passadas de famílias que passaram por grandes dificuldades, por privações, por inúmeras perdas ou por traumas vividos. Em algumas famílias, essas situações traumáticas também remontam o período das grandes guerras – registro esse que marca profundamente o corpo emocional e se perpetua por gerações.

Portanto, sacrificar-se pelo outro é uma espécie de lealdade invisível aos que também agiram dessa maneira, uma forma de honrá-los. Significa manter-se leal ao amor cego que flui através das gerações. Não sacrificar-se, quebrando o padrão, significa romper com uma tradição e, consequentemente, pode ser visto e sentido como forma de traição. Por essa razão, muitas pessoas tem dificuldade de romper com um padrão nocivo ou limitante dentro da família, por medo de não ser mais reconhecido, não ser mais “necessário” ou mesmo excluído, mesmo que esteja em jogo a sua saúde.

Ainda conforme explica Léo Costa, a dinâmica do “despedaçar-se pelo outro” gera alguns efeitos: um deles é a escassez de recursos através das gerações. O sacrifício de um descendente pelo seu antecessor priva de recursos a próxima geração. Se me sacrifico por alguém, como posso cuidar bem do futuro? Dessa maneira, dou menos para que a vida siga para frente, e assim ofereço mais do que posso para “consertar” os infortúnios do passado.

É como gastar dinheiro e muita energia com uma máquina do tempo que promete voltar no passado e resolver o que foi “pesado” na vida dos nossos entes queridos. Sabemos que isso não tem futuro (uma vez que não podemos mudar o passado, diria). Podemos sim olhar para o passado para mudarmos a nós mesmos e evoluirmos, deixando um legado diferente, mais sadio e leve às futuras gerações que não precisarão “carregar” esse passado nas costas.

O outro efeito é que, apesar do sacrifício ser realizado por amor, já não reconhece e respeita a autonomia e a dignidade do destino do outro, privando-o de agir por si mesmo e a encontrar sua própria força de cura. Se sempre me sacrifico pelo outro, fazendo por ele o que ele deveria fazer por si, ele nunca poderá reconhecer sua própria força, seus limites e ocupar o seu lugar na árvore ancestral familiar.

O sacrifício pelo outro subtrai a sua dignidade e tira dele a possibilidade de crescer. Um exemplo muito comum que se aplica nesse contexto são os casos de pais que, ao mesmo tempo que fazem e resolvem tudo para os filhos – tornado-os dependentes no futuro – também os “castram”, onde impera a expressão “não pode”, sem a ideal explicação do “porquê não pode”. Muitas vezes, sem perceber, isso acaba interrompendo um movimento sadio, que para a criança poderia ser sentido como “um erro”, mas que ao longo do tempo se tornaria uma experiência necessária para o seu crescimento.

Foto por Wherbson Rodrigues em Pexels.com

Para equilibrar essa balança entre o dar e o receber, começando a modificar esse quadro para alterar o ciclo vicioso desse padrão, convém que a mesma força que uso para sacrificar-me pelo outro seja direcionada para manter-me no meu lugar. Geralmente, digo aos pacientes: Para que você consiga exercitar o aprendizado de dizer “não” para algo que é doentio ou desarmônico nos seus relacionamentos ou para algo que você quer modificar no seu comportamento, é preciso que você diga “sim” para algo que seja importante para o seu processo evolutivo, procurando sempre manter-se no seu lugar.

Essa é uma postura que exige ainda mais força de nós: através dela perdemos uma importância excessiva na família, voltando humildemente para o nosso lugar e vendo não apenas o nosso amor, mas o amor do outro. Muitos de nós não estamos dispostos a empreender esse tipo de ação – desapegar do sacrifício pelo outro – pois ele exige mais de nós. Contudo, essa força que recebemos diante dessa postura vem do nosso próprio lugar na hierarquia familiar, muitas vezes abandonado para poder “despedaçar-se” pelo outro. Isso também nos liberta da função de “eterno salvador” na família, nos permitindo viver com menos dor e sofrimento, já que precisamos assumir o fato de que não temos controle sobre tudo.

De outro modo, em especial, vamos precisar aprender a lidar com a culpa que vem do fato de nos mantermos no nosso lugar na hierarquia familiar (já que quando nele, temos a força necessária para apoiar o outro, ao invés de nos sacrificarmos por ele), sem interferir, entregando o destino daquele por quem acreditamos ser necessário nos sacrificar a uma força maior: à sua própria alma.

Através desse movimento de entrega e desapego, de força, humildade e respeito, mesmo que leve tempo, podemos desenvolver a confiança, nos movendo em direção ao futuro com mais segurança, alegria e leveza. Ao reconhecer e me manter no meu lugar na árvore ancestral familiar, permito que o outro também ocupe e permaneça no seu. Exercito a humildade e o respeito para comigo e para com o outro, por isso ambos ganham força. O caminho e o destino que cada um veio trilhar é exclusivamente seu.

Fonte complementar: 1. Trechos do texto de Léo Costa (Instituto Alegria): “Me despedaço para manter você inteiro” | 2. “Ajuda para a vida diária” – Bert Hellinger | 3. “Para que o Amor dê certo”- Bert Hellinger | 4. “A Simetria Oculta do Amor” – Bert Hellinger | 5. Conceitos da Psicogenealogia e Epigenética.

Leituras recomendadas: 1. “Mulheres que amam demais: enquanto você espera que ele mude” – Robin Norwood (pode ser lido também por homens, uma vez que os padrões se manifestam independente de gênero) | 2. “Simbiose e autonomia nos relacionamentos: o trauma da dependência e a busca pela integração pessoal” – Franz Ruppert Sheldrake | 3. “Mulheres que amam psicopatas: como identificar homens com distúrbios de personalidade e se livrar de um relacionamento abusivo” – Sandra L. Brown| 4. “Mulheres que correm com os lobos” – Clarissa Pínkola.

Por Luciane Strähuber – Consultora e Educadora da Terapêutica Integrada

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