
Através da abordagem sistêmica e da visão do trabalho de Constelação Familiar, trago este tópico como forma de reflexão tanto para quem se encontra no papel da vítima, quanto para aquele que, de fora dele, procura encontrar formas sadias de conviver com quem está dentro dele.
Em muitos casos, aquele que se encontra no papel da vítima não percebe o distúrbio e os males que causa para si e para os outros com quem convive, agindo inconscientemente e acreditando que pessoas e o mundo geralmente não estão ao seu favor.
De outra forma, quando é desempenhado com certa consciência, a pessoa pode utilizar-se de jogos manipulatórios e chantagens emocionais para conseguir que o outro faça sempre o que ela quer. Afinal, mantendo-se no papel de vítima recebe atenção, mesmo que com isso gere sofrimento.
Essa segunda situação pode manifestar-se desde a forma como essa pessoa conseguia o que queria dos pais, em detrimento a um amor almejado e não recebido ou correspondido, até a maneira como ela conseguia existir no ambiente familiar.

Procurando manter um olhar de neutralidade e não julgamento perante ser bom ou ruim estar presente neste papel, como terapeutas precisamos respeitar a condição atual do paciente, uma vez que para sair dele requer muito trabalho interior e coragem. Um processo que vai depender do tempo, da realidade e do histórico familiar de cada um.
Isso representa encontrar novas formas de relacionar-se consigo e com os outros. Redescobrir partes de si que ficaram perdidas, que precisam ser reencontradas, restabelecidas no seu devido lugar, acalentadas e amadas, porque foram esquecidas pelo tempo nas gavetas emocionais da criança interior.
Para isso, a constelação familiar, realizada com um profissional que tenha experiência, pode ser uma ferramenta útil para começar a equilibrar o processo de ordem e pertencimento desta pessoa na hierarquia familiar, assim como trazer clareza e equilíbrio entre o dar e o receber – certamente em desequilíbrio em alguma parte do percurso familiar. Isso permite identificar porque razão é tão difícil abandonar o papel de vítima e, com ele, o sofrimento.
Existem diversas abordagens que podem explicar a escolha por essa roupagem. Todos os processos decorrem mais ou menos inconscientemente, uma vez que os limites são permeáveis.

- O sofrimento tornou-se um sentimento: a pessoa está acostumada e através do qual a sua vida se organizou. Este hábito é tão rotineiro que ainda que a pessoa sofra, ela pode sentir-se bem com ele. Para pôr fim ao sofrimento, exige-se uma mudança de hábitos. Esta mudança pode conseguir-se através de decisões conscientes ou ocorrências do destino.
- O sofrimento é a única possibilidade de se sentirem intensamente: “sofro, por tanto sinto-me, logo existo”. Ele converte-se na experiência mais intensa das suas vivências. Embora possa parecer contraditório, este paradoxo observa-se com frequência. Muitas vezes, os pacientes queixam-se de uma sensação de vazio difícil de suportar depois de ”terem se despedido” do seu sofrimento (Aqui, é importante preenchermos esse vazio com coisas que nos trazem alegria de viver e aquecem nossos corações. Um dos exercícios que indico é redescobrir dons e talentos natos, dar atenção a eles e realizá-los. Essa é uma possibilidade que ajuda a dar sentido a esse vazio).
- O sofrimento recompensa, como no clássico caso de quem se beneficia através da doença. Enquanto se sofre, recebe-se mais amor, cuidado e dedicação. Através da doença, por exemplo um enfarte do miocárdio, conseguir-se-á ser mais importante. Tudo gira em torno desse acontecimento.

- O sofrimento eleva o sofredor a uma melhor posição. Porque ele sofre, sente-se numa melhor posição relativamente aos seus semelhantes e daí surge a exigência, que é inconsciente na maioria dos casos. Uma vez que essa exigência é inadequada, não chega a conseguir cumprir-se, motivo pelo qual o papel de vítima e de sofredor se reforçam. Expressões tais como “ninguém me compreende” ou “estão todos contra mim” são convicções básicas dessas vítimas “crônicas”, que permanecem cativas no círculo vicioso do sofrimento.
- O sofrimento pode ser reconhecido socialmente e condicionar o sentimento de pertença a um grupo. A sociedade compadece-se superficialmente das “pobres mulheres abandonadas”, enquanto aos “homens abandonados” não lhes reconhece socialmente o direito ao seu sofrimento. As “mulheres abandonadas” formam um grupo que se lamenta, afirma e motiva reciprocamente. Quando a mulher abandona o seu papel de vítima, deixa de pertencer a este grupo. Desta forma, embora pese todos os aspectos de significação, também os grupos de auto-ajuda correm riscos. Frequentemente, a identidade do grupo ordena que somente se possa participar quando se sofre. Observação: é natural que num grupo de auto-ajuda o sofrimento das pessoas envolvidas seja genuíno, afinal foram unidas por ele para o superarem. Contudo, é importante que haja evolução dessas pessoas, mudanças de comportamento, de hábitos e melhorias na vida, assim o grupo cumpre o seu propósito. Caso contrário, as pessoas envolvidas permanecem prisioneiras num ciclo vicioso que pode ser destrutivo.
- O sofrimento caracteriza-se geralmente pela passividade, portanto, deixar a posição passiva significa agir! Neste contexto positivo, significa assumir uma responsabilidade e “entrar em ação”. Observa-se que os sofredores sentem uma forte inibição para colocar-se em ação, devido às implicações familiares procedentes de gerações anteriores – geralmente residentes em traumas. Nestes casos, os sintomas são o fracasso e a falta de trabalho. Aferrar-se ao papel da vítima serve para “não chegar a ser assim, como os pais e os avós” – segundo palavras de Bert Hellinger: “aquilo que nego ou excluo torna-se parte de mim”.

- O sofrimento pode ser mal interpretado e, dessa forma, restabelecer a própria inocência. Por medo de reconhecer a autoria – alguma ação que tiveram de que se envergonham ou de que sentem culpa – a pessoa refugia-se no papel de vítima e volta a ser aparentemente inocente. Como exemplo, pode-se mencionar o papel de muitas pessoas durante o III Reich, que depois da guerra tornaram ao papel de vítimas: “nunca tinham ali estado”. O papel de vítima aqui é quase um fenômeno de massas e foi, durante muito tempo, socialmente aprovado. Esta “falta de reconhecimento” da própria culpa provoca novamente o sofrimento das gerações seguintes.
- “A culpa nunca é minha”. Como compensação pela culpa “não reconhecida” dos sacrificadores em gerações anteriores, os membros da família subsequentes sentem-se responsáveis infundadamente. Estas implicações provocam uma persistência no papel de vítima. Por lealdade com as vítimas dos sacrificadores, sentem-se traidores quando abandonam esse papel. Assim que o amor pelo sacrificador ganhe espaço, poderá deixar-se com ele os fatos que lhe correspondem, resolvendo-se dessa forma a compulsão para o sacrifício. Para os descendentes das vítimas, vale frisar que também eles podem permanecer no papel de vítima “por lealdade aos seus antepassados”. Os sintomas destes sofredores são similares, são formas graves de doença e depressão.

Nas obras de Bert Hellinger, ainda encontramos uma reflexão sobre o tema: “O papel de vítima é a mais refinada forma de vingança. E por quê? Pessoas ou grupos, quando se vitimizam fazendo-se de incapazes, se tornam os oprimidos bonzinhos, tirando toda a responsabilidade de seus próprios ombros.
Quem assume o papel de vítima está dizendo para o mundo que tem uma condição intrinsecamente desfavorável e desprivilegiada em relação aos demais. Quer passar a ideia de que não faz porque não pode. Então, isso mobiliza pessoas a fazerem por ele o que ele mesmo deveria estar fazendo por si.
Aquele que se vitimiza lança um olhar de cobrança sobre todos, o que faz os demais se sentirem culpados e devedores. A vítima se coloca no lugar de “poder tudo”, pois o outro é “devedor” dela sempre. Afinal, o mundo lhe deve. Ao se colocar nesse lugar, nesse papel, nessa condição, põe no outro o rótulo também de opressor, mau, culpado.
No papel de vítima, ele se sente como a pessoa boa, injustiçada, e o outro é o mau. Pois o outro só poderá ser o opressor ou o devedor, e assim vai sempre ser olhado como alguém pequeno. Essa é a vingança velada.”

Assim, perante essas abordagens e reflexões, fica a pergunta: o que fazer para sair do papel da vítima, para desindentificar-se dele, para assumir a responsabilidade perante si e sua vida, para ser a única autoridade em seu mundo?
É preciso olharmos para o que foi excluído, reconhecê-lo e devolver o problema a quem de direito, integrando apenas o que for bom, para que essa parte ocultada ou excluída na família não torne-se um “parasita” que rouba a nossa energia vital, a nossa clareza mental para agir, para que não ocupe o lugar vazio que será gerado dentro de nós quando traumas forem liberados – seja a energia de um trauma pessoal ou de um fato ocorrido em gerações passadas.
Esse lugar vazio, esse território que nos pertence, poderá ser preenchido com o que tem importância para nós, com o que nos traz alegria, nos fortalece e nos faz progredir, sejam dons e talentos, relacionamentos com pessoas mais saudáveis, um novo emprego ou um projeto de vida, evitando uma divisão mental diante do que é nosso e do que é do outro – divisão essa que cria confusão interior, nos embota os sentidos e a clareza, nos impede de agir em prol do nosso próprio bem.
Isso requer coragem e persistência para que tomemos as rédeas de nossa vida e sejamos a única autoridade em nosso mundo, mesmo que leve tempo. Isso requer que reassumamos o nosso poder pessoal, nos perguntando: “Para quem estamos destinando o nosso poder? Com quem está o poder da nossa vida?” Dar o primeiro passo em direção ao que se quer e seguir com ação constante, mesmo um pouco a cada dia, é um caminho para uma solução possível.
Se você tem interesse em aprofundar nesse assunto e conhecer as engrenagens intrínsecas a partir de casos reais, além de como esse papel de vítima pode desenvolver-se para um papel de perpetrador, recomendo a leitura dos livros: “Simbiose e Autonomia nos Relacionamentos: o trauma da dependência e a busca da integração“, de Franz Ruppert, e “A Simetria Oculta do Amor“, de Bert Hellinger.
Luciane Strähuber – Terapeuta Integrativa e Educadora da Terapêutica Integrada
Fonte complementar: “Enfermedad que Sana. Sintomas Patológicos y Constelaciones Familiares” – Ilse Kutschera e Christine Schäffler – Traduzido do castelhano por Eva Jacinto